Nesta reportagem publicamos na íntegra os resultados de uma extensa pesquisa, envolvendo centenas de produtos em diversas cidades, sobre os custos da alimentação sem glúten no Brasil.
Por Vera Paim e Cynthia Schuck.
O glúten – uma proteína encontrada no trigo, cevada e centeio - está presente na alimentação de milhões de pessoas no mundo todo, fazendo parte da composição de alimentos como massas, pães, biscoitos, bolos, tortas, pizzas, espessantes, molhos e temperos, de bebidas como a cerveja e o whisky, e até mesmo de medicamentos e cosméticos.
Além de fazer parte da composição de cultivos de ampla distribuição – como o trigo – a popularidade do glúten se deve também à sua alta elasticidade: devido à seu tamanho e estrutura, o glúten permite que os componentes de alimentos como massas, pães e bolos permaneçam coesos, sem esfarelar, mesmo durante o processo de fermentação das massas. A leveza e suavidade deste emaranhado elástico é gentil ao paladar, somando prazer à experiência gustativa.
Apesar de seu sucesso do ponto de vista de engenharia alimentar, para um parcela relevante e crescente da população a ingestão desta proteína, ainda que em quantidades muito pequenas, é extremamente prejudicial à saúde. São os portadores da doença celíaca, uma doença crônica caracterizada por uma reação auto-imune ao glúten e que até recentemente era tida como rara, mas que com a descoberta de novos testes diagnósticos e maior conscientização poderá em poucos anos se posicionar entre as doenças hereditárias mais frequentes da atualidade. Estima-se que a doença celíaca – a qual exige a eliminação total e permanente do glúten da dieta – afete quase 1% da população de diversos países. Em São Paulo, por exemplo, estima-se que no mínimo 1 a cada 214 pessoas sejam portadoras da doença . Se extrapolados para os demais estados, seriam quase 1 milhão de brasileiros portadores, muito mais do que a população de capitais inteiras no país!
O efeito prejudicial da ingestão de glúten também já foi associado à diversas outras condições médicas, incluindo o autismo, esclerose múltipla, doença de chron, síndrome do intestino irritável, diversos tipos de sensibilidade ao glúten, dentre outros. A soma da demanda por uma dieta sem glúten por portadores destas condições e adeptos ‘saudáveis’ da dieta sem glúten (sem necessidade médica estrita da dieta) têm assim resultado em uma explosão na busca e consumo de produtos sem glúten no mundo inteiro, incluindo o Brasil.
A figura abaixo exemplifica esta demanda crescente, mostrando o crescimento do volume de buscas pelo termo ‘gluten free’ (‘sem glúten’) realizadas no Google nos últimos 5 anos. O crescimento é exponencial, tendo praticamente triplicado neste período.
Figura 1. Crescimento no volume de buscas no Google, entre Janeiro de 2004 e Outubro de 2009, pelo termo ‘gluten free’. Os dados são padronizados pelo volume de buscas médio em Janeiro de 2004 (ou seja, já são corrigidos para o fato de que mais gente usa o Google e mais pesquisas no google são feitas atualmente). Assim, o valor 3 no eixo das coordenadas representa um volume de buscas 3 vezes maior que em janeiro de 2004. A linha pontilhada vermelha representa o crescimento exponencial das buscas (r2=0.93).
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Nos Estados Unidos, por exemplo, o mercado de produtos sem glúten cresceu a uma taxa média de 28% ao ano de 2004 a 2008, com um volume de vendas de US$1.6 bilhões em 2008, e projetado para US$2.6 bilhões em 2012 (Packaged Facts in the brand-new report, “The Gluten-Free Food and Beverage Market: Trends and Developments Worldwide, 2nd Edition).
No Brasil, a tendência também é de crescimento, com centenas de novos produtos, serviços e negócios voltados à este setor tendo surgido recentemente. Além disso, o aumento na taxa de diagnóstico da doença celíaca e de outras condições nas quais a exclusão do glúten é praticada (como o autismo) deverão também contribuir para aumentar ainda mais a demanda no setor.
Apesar da busca crescente por tais produtos e da existência de uma parcela relevante da população que necessita destes produtos, ainda não existem dados sistemáticos sobre o custo da alimentação sem glúten no Brasil (e sua comparação com o custo da alimentação tradicional, com glúten). Também não são conhecidas possíveis diferenças geográficas, bem como o impacto econômico que a necessidade de adoção da dieta sem glúten impõe. A presente pesquisa tem portanto como objetivo fornecer tais dados através de um levantamento sistemático de preços em 5 capitais brasileiras.
Metodologia
A pesquisa de preços foi realizada em 5 capitais brasileiras, a saber: São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Brasília e Florianópolis, no período de Setembro e Outubro de 2009.
Os produtos incluídos na coleta de preços foram aqueles pertencentes à gêneros alimentícios contendo glúten e frequentemente presentes na alimentação do brasileiro, para os quais a substituição por similar sem glúten se faz necessária. Um total de 7 produtos principais foram identificados, conforme indicado na tabela 1.
Gêneros alimentícios incluídos na pesquisa de preços
- Pão: Pesquisado o preço do Pão de Forma, para o qual substituto sem glúten é mais disponível
- Farinha de trigo: A Farinha de trigo é comumente substituída por farinha de arroz, de milho, de mandioca, polvilho, fécula de batata e de mandioca, cujas proporções e quantidades são variáveis dependendo da refeição preparada. Para a farinha sem glúten, utilizamos uma média do preço destas farinhas.
- Macarrão: Pesquisados o preço do spaghetti e fuzzili
- Biscoito: Pesquisado o preço do biscoito doce simples (sem recheio) em ambos os casos (com e sem glúten)
- Torrada: Pesquisado o preço da torrada simples
- Bolo: Pesquisado o preço do bolo simples, doce, sem recheio ou cobertura, em ambos os casos (com e sem glúten)
- Cereal matinal: Incluídos cereais do tipo granola
Em todos os casos, e para permitir a comparação de valores, todos os preços foram padronizados para preço por quilo (R$/Kg).
Amostragem
Para cada um dos 7 gêneros alimentícios listados na tabela 1 em cada uma das 2 categorias (com glúten e sem glúten), em cada uma das 5 capitais amostradas, foram pesquisadas um mínimo de 3 marcas, provenientes de no mínimo 2 locais distintos (embora, em média, 10 marcas foram pesquisadas para cada produto em cada categoria). Durante a realização da coleta de dados, foi possível notar que, com exceção da cidade de Florianópolis, a disponibilidade de produtos sem glúten em supermercados e hipermercados comuns ainda é limitada, predominando em lojas de produtos naturais, empórios ou lojas especializadas em produtos sem glúten.
Ressalta-se que os dados não serão divulgados individualmente, já que não é objetivo da pesquisa a comparação de preços entre estabelecimentos comerciais ou entre marcas de produtos.
Custo Mensal da Cesta Básica
Foi calculado o custo mensal da cesta básica substituindo-se os itens com glúten presentes na cesta (pão e farinha), por seu equivalente sem glúten. Para tal, foram utilizados os gêneros alimentícios e quantidades presentes na composição da cesta básica nacional, a saber:
Cesta Básica Nacional. Produtos e Quantidades (em Kg quando não indicado).
- Pão: 6
- Farinha (farinha de trigo nas regiões centro-oeste, sul e sudeste): 1.5
- Feijão: 4.5
- Arroz: 3
- Batata: 6
- Tomate: 9
- Carne: 6.6
- Leite: 7.5 l
- Café: 600 g
- Banana: 7.5 dz
- Açúcar: 3
- Óleo: 1080 ml
- Manteiga: 750 g
O custo da cesta básica (incluindo os produtos com glúten) foi calculado como a média do custo da cesta básica nas capitais pesquisadas em Outubro de 2009 (dados provenientes do Dieese – Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Sócio-Econômicos). Para calcular o custo da cesta básica sem glúten em cada estado, substituiu-se o preço dos dois produtos com glúten (pão e farinha) pela média aritmética do preço de seu equivalente sem glúten no estado, considerando-se as quantidades estabelecidas acima
Validação dos Dados
Para determinar a representatividade de nossa amostra de preços, bem como a representatividade das diferenças de preços entre as capitais, comparou-se o preço da farinha de trigo obtido pelo Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Sócio-Econômicos, Agosto/Setembro de 2009) nas 5 capitais com o preço da farinha de trigo na presente pesquisa nas mesmas 5 cidades. Adotou-se o preço da farinha como padrão de comparação, já que o tipo de pão pesquisado aqui (pão de forma) difere do pão pesquisado pelo Dieese (pãozinho francês, ou ‘pão de trigo’).
Em ambos os casos (Dieese e presente pesquisa), o Rio Grande do Sul foi o estado com menor preço/Kg (R$1.38/Kg e R$1.26/Kg, respectivamente). O preço médio (média das 5 capitais) da farinha de trigo pelo Dieese foi de R$1.85/Kg, enquanto o preço médio na pesquisa atual foi de R$2.02/Kg (diferença de 9.1%). Não houveram diferenças significativas entre as duas amostragens (teste-t para amostras pareadas: t4=-1.51, p=0.2).
Resultados
Foram amostrados um total de 443 produtos, pertencentes à 130 marcas, e provenientes de 17 locais (8 cadeias de supermercados e 9 lojas especializadas em produtos naturais e/ou sem glúten). Dentre os 7 gêneros alimentícios investigados, os produtos sem glúten foram mais caros em todos os casos, com diferenças de preço variando, em média, entre 57% (bolo) e 223% (pão).
Na Figura 2 é possível observar que as maiores diferenças de preço são observadas justamente para itens alimentares considerados mais básicos, como pão, farinha e macarrão. No geral, o consumidor paga em média 138% a mais pela aquisição de produtos sem glúten (considerando as 7 categorias conjuntamente).
Figura 2. Porcentagem de aumento médio de preço (R$/Kg) dos produtos sem glúten em relação ao preço dos produtos com glúten em 5 capitais brasileiras (São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília, Florianópolis e Porto Alegre).
A Figura 3 mostra o preço médio (R$/Kg) dos produtos com glúten e seus similares sem glúten em cada um dos gêneros alimentícios. Apesar de mais caros, a diferença de preço para itens como ‘bolo’, ‘torrada’ e ‘biscoitos’ é menor do que a diferença de preço entre itens como ‘farinha’ e ‘pão’ (possivelmente em função do valor mais baixo dos itens contendo glúten nestas últimas categorias).
Figura 3. Preço médio (R$/Kg) das categorias de produtos com glúten e seus similares sem glúten em 5 capitais brasileiras (São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília, Florianópolis e Porto Alegre). (Obs: Esclarecimentos sobre as Farinhas 1 e 2: tanto no caso da farinha 1 como da farinha 2 a farinha 'com glúten' é a farinha de trigo, como descrito. Já no caso da farinha sem glúten, a farinha 1 é o preço médio das farinhas de arroz, de milho, de mandioca, polvilho, fécula de batata e de mandioca, e o preço da farinha 2 é o preço da farinha especial sem glúten (uma mistura pré-pronta, específica para dietas sem glúten) que se compra em lojas especializadas.
Variações Geográficas no Custo da Alimentação sem glúten
Em todas as capitais estudadas o custo da alimentação sem glúten foi mais alto. No entanto, as maiores diferenças foram observadas para as cidades de Porto Alegre e Rio de Janeiro (Figura 4). Em Florianópolis, apesar dos produtos sem glúten custarem praticamente o dobro dos produtos com glúten, as diferenças percentuais foram as menores da amostra, possivelmente em função da maior disponibilidade de produtos sem glúten em supermercados e hipermercados nesta cidade.
Figura 4. Aumento (%) do preço dos produtos sem glúten em relação ao seu similar com glúten em 5 capitais brasileiras (aumento médio considerando os gêneros: pão, farinha, torrada, cereal matinal, macarrão, bolo e biscoito conjuntamente).
Custo Mensal da Cesta Básica
O custo da cesta básica (ração mínima mensal calculada para um adulto) foi mais alto em todas as capitais quando o pão e a farinha computados na cesta são substituídos por similares sem glúten. O aumento de preço variou entre 35 reais (Santa Catarina) e 115 reais (Rio de Janeiro) a mais por cesta (Figura 5).
Figura 5. Aumento (em R$) do preço da cesta básica sem glúten em relação à cesta básica com glúten em 5 capitais brasileiras (na cesta básica sem glúten substitui-se o pão e farinha por similares sem glúten).
Conclusões
A presente pesquisa revela que a dieta sem glúten representa um impacto financeiro relevante para seus adeptos. Mesmo considerando a cesta básica nacional, onde apenas o pão e a farinha de trigo são substituídos por alternativas sem glúten, o aumento nos custos com alimentação é significativo. Quando incluídos produtos como macarrão, biscoito e cereais o aumento de preço é ainda maior, já que nas principais categorias de alimentos com glúten (macarrão, pão, farinha, torrada, biscoito, bolo e cereais matinais) os substitutos sem glúten são em média 138% mais caros.
Vale lembrar também que o impacto financeiro da dieta por família é possivelmente maior: por exemplo, no caso de celíacos é comum a presença de mais de um familiar portador (dada a natureza genética da condição). Além disso, nesta e em outras condições médicas também é frequente a adoção da dieta sem glúten por outros membros da família (ainda que estes não sejam portadores), tanto para motivação do portador como para evitar os riscos da contaminação cruzada (uma vez que quantidades mínimas de glúten podem ser prejudiciais à saúde). Finalmente, em muitos casos há também a necessidade de suplementação da dieta com vitaminas e outros compostos (como cálcio) em função da presença de deficiências nutricionais, além da necessidade de substituição do leite por alternativa sem lactose (leite de soja ou leite com baixo teor de lactose, também mais caros).
A constatação do elevado custo da dieta enfatiza assim a importância da atual legislação brasileira (lei 10.674 de 16 de maio de 2003), a qual requer a declaração da presença ou ausência de glúten no rótulo de todos os produtos alimentícios, proporcionando assim ao adepto da dieta sem glúten uma maior disponibilidade de produtos e um custo mais baixo.
A pesquisa atual também mostra que a variabilidade no preço dos produtos sem glúten é bastante alta. Tais dados mostram que a pesquisa de preços prévia à aquisição dos produtos pode, dentro de limites específicos, reduzir o impacto financeiro associado à necessidade da dieta. Pesquisas futuras são no entanto necessárias para avaliar o impacto do custo dos produtos sem glúten sobre a possibildiade de transgressão da dieta, principalmente no caso de famílias de baixa renda.
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